No
segundo semestre de 1899, pipocaram nos jornais a notícia das gêmeas siamesas Rosalina e Maria Pinheiro Davel, naturais de Afonso
Cláudio, que passariam pela inédita cirurgia de separação no Rio de Janeiro.
O jornal O Estado do Espírito Santo[1],
reproduzindo matéria da Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, trazia a notícia de que a Sociedade de Medicina e
Cirurgia do Rio de Janeiro reunira-se no dia 17 de julho de 1899, às 8 horas da
noite, para discutir a possibilidade e eficácia de uma operação no caso das
meninas xifópagas Rosalina e Maria.
As
crianças foram apresentadas pelo Dr. Álvaro Ramos, que leu uma exposição das experiências psicológicas feitas
pelo Dr. João Paulo, exames de sangue feitos pelo Dr. Miguel Pereira, dos
órgãos visuais pelo Dr. Abreu Fialho e de urina pelo professor Souza Lopes. O Dr. Álvaro Ramos apresentou também o
resultado de seus próprios estudos e quadros radiográficos demonstrando a
completa separação das duas caixas torácicas.
A
reunião concluiu que a experiência poderia ser coroada com êxito, pois os dois
organismos funcionavam de forma independente.
Rosalina
e Maria foram despidas e observadas atentamente durante cerca de vinte minutos.
O
caso das meninas Rosalina e Maria foi classificado pela comunidade médica como
o mais importante ocorrido no Brasil até então.
Depois
de feitos os exames e ter sido a questão amplamente debatida pela equipe
médica, decidiu-se pela cirurgia de separação.
Em
31 de maio de 1900[2],
a Gazeta de Notícias trazia minuciosas informações de Rosalina e Maria,
e o sucesso alcançado pelo Dr. Eduardo Chapot Prevost na cirurgia de separação das siamesas.
O
Dr. Chapot Prevost, que era professor de histologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, alcançou renome na cirurgia brasileira por seu feito,
elevando a medicina brasileira a patamares superiores, com a realização da
primeira cirurgia de sucesso do tipo realizada em todo o mundo.
“As
almas patrióticas estremecem de júbilo e regozijam-se diante desta conquista do
notável médico brasileiro, de quem a pátria muito tem a esperar ainda.”
A operação foi efetuada
na antiga Casa de Saúde de São Sebastião, para onde as meninas Rosalina e Maria
foram transferidas, logo que se restabeleceram do traumatismo causado pela
primeira intervenção. Sempre assistidas pelo Dr. Chapot.
“A
operação realizou-se no melhor pavilhão do edifício da casa de saúde, e o
cômodo, profusamente iluminado, em que se efetuou o arrojado cometimento,
sofreu custosos e inteligentes reparos, adequados ao fim que se destinava.
Todas as paredes estavam pintadas de cal anti-septisada; o assoalho polido
pelas continuadas e rigorosas lavagens anti-sépticas; portas, janelas, teto,
portais, tudo fora novamente pintado a óleo.”
“Além
dos instrumentos necessários, o Dr. Chapot mandara construir uma mesa, fácil de
dividir-se em duas, cada qual com uma das meninas, logo que fossem separadas.”
Toda
a equipe médica foi esterilizada, assim como suas roupas e instrumentos
utilizados. Os procedimentos foram cercados de extremo cuidado para que nada
fosse contaminado. Medidas sem precedentes até então na história da medicina
brasileira.
Às
nove horas da manhã do dia 30 de maio começaram os procedimentos cirúrgicos.
Rosalina facilmente cedeu a ação do anestésico, resistindo um pouco mais a
Maria, que despertou à primeira incisão. Às nove horas e meia o Dr. Chapot
começou a separação do fígado, parte mais importante e delicada de seu trabalho
e que lhe trouxe mais glória.
Às
dez horas e quarenta minutos afastaram-se as mesas, estavam separadas as
meninas – Rosalina e Maria. Concluiu-se a operação às onze e meia.
Rosalina
e Maria despertaram da anestesia clorofórmica em ótimas condições, reconhecendo
os que estavam à sua volta.
Para
a cicatrização geral foram necessárias apenas algumas semanas.
Uma
anomalia foi verificada em Rosalina, ela tinha o coração à direita.
Maria
não sobreviveu, vindo a falecer logo depois de ser separada. O jornal disse que “desde o começo inspirava maiores cuidados”.
Em
25 de junho de 1900[3],
foi celebrado uma missa na matriz da Glória, na cidade do Rio de Janeiro, em ação de graças pelo restabelecimento de Rosalina,
oficiado pelo arcebispo da então capital do país.
Rosalina
seguiu a pé da casa de saúde São Sebastião ao templo, recebendo durante o
trajeto o afeto da multidão que abria alas para a sua passagem.
Rosalina
foi acompanhada pelo Sr. Dr. Chapot Prevost.
Ao
descer as escadas da igreja, uma criança ofereceu a Rosalina um grande buquê de
violetas e camélias naturais.
Em
26 de julho de 1900[4],
o 1º delegado auxiliar da capital federal resolveu abrir inquérito sobre
a causa da morte de Maria, irmã de Rosalina, depois de ter ouvido as
declarações dos médicos legistas da polícia do distrito federal. Com base na análise dos legistas o
delgado auxiliar colheu depoimento dos médicos que assistiram a autopsia.
Em
agosto de 1900[5],
o Sr. João Davel telegrafou ao Dr. Chapot Prevost testemunhando sua gratidão pela dedicação e paternal
interesse dispensado às suas filhas Rosalina e Maria.
Nesse
telegrama o Sr. João Davel protesta contra o procedimento da polícia do Rio em relação à morte de Maria.
João
e sua esposa tinham dez filhos e, sem recursos deixou Rosalina e Maria, de sete
anos de idade, aos cuidados da família Chapot Prevost. Rosalina foi adotada pelo Dr. Eduardo.
O Jornal do Comércio de 23 de setembro de 1900[6],
trouxe a notícia de que uma quantidade de dinheiro considerável havia sido
arrecadada em favor da menina Rosalina no valor de dez contos e oitocentos e
quarenta e quatro mil e trezentos réis, dos quais um conto novecentos e vinte e
um mil e sem réis foram entregues ao Dr. José Gomes Pinheiro Junior, possivelmente para ser levado à família em Afonso Cláudio e o
restante do valor foi convertido em apólices da dívida pública nacional.
Nesta
ocasião Rosalina excursionava pela Europa com o Dr. Chapot Prevost, onde o fruto bem sucedido da inédita intervenção cirúrgica
era exibido para as principais plateias mundiais.
No
dia 9 de outubro de 1900[7], o
Dr. Chapot Prevóst apresentou a menor Rosalina à Academia de Medicina de Paris,
sendo a sessão assistida por muitos brasileiros.
Depois
de sua apresentação em Paris, Rosalina, também foi notícia em vários jornais da
França.
Sobre
a pequena Rosalina o Jornal Petit disse o seguinte:
“Rosalina
teve a felicidade de sobreviver, viu-se restituída à realidade. Sabendo agora, comer,
andar, viver como as demais criaturas, de boa saúde, sorridente, bonita, toda
catita com seu vestidinho de seda amarela exótica, tagarelando como um
passarinho na sua língua materna, aquela que ainda ontem estava ameaçada de
permanecer um monstro e que é hoje, graças ao Dr. Prevost, uma rapariguinha
encantadora, cheia de vivacidade e inteligência. Compareceu ontem diante dos
sábios austeros da Rua dos Saint-Péres e colheu aplausos, devido tanto a sua
gentileza, quanto à originalidade de sua estrutura: tórax de ossatura
incompleta, coração à direita...”
Sobre
a irmã Maria, eis o comportamento que Rosalina apresentava, ignorando sua
morte: “Quando aproxima-se de um espelho, vendo a sua própria imagem, julga ver
a de Maria, sorri e manda-lhe beijos dizendo: ‘Vem cá, anda daí irmãzinha!’”
Na
academia parisiense, vendo uma forma de gesso, que reproduzia o estado das
crianças antes da operação, Rosalina ainda uma vez pensou ter encontrado a sua
querida Maria e estendeu para a forma muda os seus braços, com um gesto de
afeição terna, e admirada de não vê-la retribuída, como nos primeiros dias de
vida.
Depois
da viagem[8] à
Europa em companhia do Dr. Chapot, que apresentou o seu “caso” cirúrgico às
comunidades médicas da França e da Alemanha, foi Rosalina para o Espírito
Santo, visitar seus pais.
Quando
chegou a Cachoeiro de Itapemirim em companhia do Dr. Gomes Pinheiro, seu protetor, ainda não se achavam ali seus pais.
Chegaram
algum tempo depois, e em uma bela tarde foi Rosalina à estação esperá-los.
Rosalina
estava muito falante, falava de sua viagem à França, do carinho recebido de
todos onde passava.
Depois
da chegada de seus pais e da cena comovente do reencontro, Rosalina, que trazia
um leque para sua irmãzinha, que supunha que ela estava em companhia de seus
pais, disse:
-
Onde está a Maria?
Uma
senhora, que se achava presente, Dona Áurea, disse sem cerimônias:
-
A Maria morreu...
Rosalina
ficou triste, mas não manifestou de momento, grande comoção.
Dias
depois, porém, começou a referir-se a irmãzinha, muito interessada, com
perguntas sobre a sua doença, dizendo lembrar-se de que a tiraram da sala em
que estava em sua companhia, para que ela não a visse morta.
Após
a cirurgia Rosalina também começou a aprender a ler e a escrever e expressou
desejo de ingressar para a irmandade.
No
encontro com seus pais fez um singelo versinho expressando o momento vivido:
“Meu
pai chorou...
Minha
mãe chorou...
Eu
também chorei um bocado...”
Na
cidade do Rio, Rosalina ficava quase durante todo o dia em casa da sogra do Dr.
Pinheiro, que como a sua ficava situada no Morro da Glória, atrás da Igreja.
Menos
de um ano depois da cirurgia já subia bem as escadas do morro, dizia ela:
“...seguro bem no corrimão, que eu não quero cair.”
[2] O Cachoeirano. Cachoeiro de Itapemirim, 7 jun. 1900, ano XXII, n. 44, p. 1.
[3] O Cachoeirano. Cachoeiro de Itapemirim, 1 jul. 1900, ano XXII, n. 51, p. 2.
[4] O Cachoeirano. Cachoeiro de Itapemirim, 26 jul. 1900, ano XXII, n. 58, p. 1.
[5] Estado do Espírito
Santo. Vitória, 14 ago. 1900, ano XIX, n. 186, p. 2.
[6] O Cachoeirano. Cachoeiro de Itapemirim, 30 set. 1900, ano XXII, n. 77, p. 1.
[7] O Estado do Espírito
Santo. Vitória, 23 nov. 1900, ano XIX, n. 275, p. 3.
[8] O Cachoeirano. Cachoeiro de Itapemirim, 16 mai. 1901, ano XXIII, n. 38, p. 2.
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Artigo extraído do livro: Notícias de Afonso Cláudio: A história de Afonso Cláudio contada pelos jornais - 1881-1949. Campinas : Agbook, 2014. pp. 93-95. Escrito por Adilson Braga Fontes.
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