terça-feira, 22 de novembro de 2011

Viagem de Saint-Hillaire de Guarapari a Vila Velha



Augustin François César Prouvençal de Saint-Hilaire (1779-1853), foi um botânico, naturalista e viajante francês. Viajou alguns anos pelo Brasil, tendo escrito importantes livros sobre os costumes e paisagens brasileiros do século XIX. O francês veio para o Brasil em 1816, onde permaneceu até 1822. Segundo ele e as autoridades ministeriais que o enviaram, os objetivos maiores de sua viagem seriam o bem-estar da humanidade e a glória nacional. Mas o fato é que Saint-Hialire, por meio de suas andanças pelo Brasil, nos legou riquíssimos conhecimentos sobre nossa biodiversidade, geografia, cultura. O texto abaixo é baseado no relato de suas andanças pelo Espírito Santo.

“... Deixando Guarapari, atravessei o rio... Tão logo me vi do outro lado do rio, cruzei a planície que já havia avistado quando ainda na vila. Mostra ela uma superfície arenosa e apresenta uma vegetação,, que eu havia observado, semelhante à das várias restingas que eu percorrera até então. Do outro lado dessa planície entrei numa floresta e, daí a pouco, cheguei a Perocão, lugar que tirou seu nome de uma ribeira cujas águas correm na vizinhança. A casa onde fiz parada [...] foi construída ao cimo de pequena montanha que domina uma enseada bastante larga de onde também se avista o alto mar...
A pé da colina vi o vale que rega o Perocão; florestas imensas se estendem do lado oeste e, à distância se percebem as altas montanhas...
Depois de haver deixado meu hospedeiro, atravessei o Perocão, que se lança pouco abaixo no oceano. A cerca de ¼ de légua dessa ribeira, encontrei outra igualmente pequena, a de Una (ribeira negra) junto a qual se acham cabanas muito mal conservadas...
Da mesma forma que o Rio Perocão, a Ribeira de Una se transpõe por uma ponte. Mais longe, atravessei terrenos arenosos, nos quais a vegetação é a das restingas; rodei os pântanos e afinal me vi de novo às margens do mar, da qual me havia distanciado por certo tempo.”
Pelo relato de Saint-Hillaire, na ocasião Guarapari não passava de uma pequena Vila, com suas casas concentradas no que hoje é o centro. Para cruzar o rio (enseada) na saída da cidade em direção a Vila Velha era preciso usar canoas, ainda não havia ponte.
De Guarapari, passando pela Ponta da Fruta e chegando a “Sitio de Santinhos” “vê-se a Baía do Espírito Santo.”
“Pouco mais ou menos a meio caminho, encontrei a Ribeira do Jecú, perto da qual estão espalhadas algumas choupanas. Passa-se sobre esse pequeno rio por uma ponte de madeira, cuja entrada é fechada por uma grande porta, ao passar a qual, é exigido tributo.”
O viajante se refere ao Rio Jucu, como Jecú, o que em nota é corrigido posteriormente.
Uma observação interessante é a cobrança de pedágio para atravessar a ponte. Não mudou muita coisa, hoje o pedágio continua, só que em outra ponte.
Naquela época ainda se usava a estrada velha, que passava dentro da Barra do Jucu, que margeando o mar saia em Coqueiral.
"O Jecú se lança no oceano, pouco abaixo da ponte, mas sua desembocadura tem pouca profundidade... Esta circunstância havia decidido os jesuítas, possuidores de três fazendas situadas à margem do Jecu, a cavarem um canal que, comunicando a ribeira à Baía do Espírito Santo, pusesse os gêneros alimentícios ao abrigo dos riscos que corriam ao ser transportados em canoas, por mar.”
Saint-Hillaire observa que os jesuítas possuíam fazendas às margens do Rio Jucu e que sua foz era pouco profunda para uso de embarcações, o que mobilizou os religiosos a construírem um canal que ligasse o rio ao mercado consumidor, Vitória. O canal em questão é o Marinho, que existe até os dias atuais, extremamente poluído e entregue ao descaso das autoridades e das populações que habitam o seu entorno.
O canal, junto com outros dois em Minas, eram os únicos canais construídos até então no Brasil. Em nota o editor diz que os canais mineiros “nunca serviu para nada ou estão entulhados”, sendo o do Espírito Santo o único que foi usado e que ainda existe.
“Para além do Jecu, entrei num bosque e depois cheguei a vasto campo, onde se poderia criar muito gado. O horizonte é limitado, a oeste por outeiros, que sem dúvida fazem parte de cadeia marítima; num plano menos distante vêem-se montanhas, entre as quais é possível distinguir uma de forma cônica, que tem o cume coroado pelo famoso Convento de Nossa Senhora da Penha...”
Depois de deixar o Jucu, Saint-Hillaire tem uma visão panorâmica da região que hoje é composta por vários bairros de Vila Velha. Apesar de estar em solo canela-verde e de ter avistado o que possivelmente já era de seu conhecimento, o Convento da Penha, ele toma outro caminho. Segue pelo o que seria hoje a Darly Santos e chega as margens da Bahia de Vitória, em Paul ou São Torquato, neste lugar toma uma canoa e desembarca em Vitória, onde permanece por alguns dias antes de seguir para seu destino, o norte do estado.
Durante sua caminhada da foz do Jucu até tomar a embarcação para Vitória, o francês comenta que o caminho era pouquíssimo usado e que a certo ponto achou que estivesse perdido. Este comentário mostra que a região da atual Rodovia Lindemberg era pouco habitada. As pessoas se concentravam no entorno da Bahia de Vitória, fato que pode ser facilmente notado pelas muitas construções antigas encontradas em Paul, Argolas e São Torquato, e que são raras ou inexistentes em Cobilândia e outras bairros mais distantes.
Ao retornar de sua incursão pelo norte capixaba, Santi-Hillaire manifestou o desejo de conhecer Vila Velha. Segue seu relato:
Saindo de Vitória “tomamos nossa canoa e nos dirigimos para a entrada da baía. Após haver contornado as montanhas que a circundam do lado sul, chegamos a um ancoradouro dominado pela montanha da Penha e no fundo do qual se situa a cativante Aldeia de Vila Velha, onde desembarcamos.”
Pelo que o botânico viu, Vila Velha não passava de um aldeamento de pessoas.
“Como já disse, Vila Velha foi o primeiro estabelecimento que os portugueses fundaram na província e se chamou primitivamente Vila do Espírito Santo.”
Saint-Hillaire apresenta como principal motivo para a retirada dos primeiros colonos de Vila Velha para Vitória o que usualmente se aprende nos livros de história, os insistentes ataques dos índios. No entanto ele enumera outras razões para o fracasso da fixação em território canela-verde, e fala da condição do lugar, na ocasião de sua visita:
“Outras razões contribuíram ainda para impedir que a Vila do Espírito Santo, ou Vila Velha, adquirisse alguma importância: as águas são ali de má qualidade; o ancoradouro, o beira do qual a vila foi construída, é raso e as embarcações não podem navegar nele; por último as terras da vizinhança são arenosas por demais para ser cultivadas... Esta pretensa vila é apenas um aldeamento, formado quase exclusivamente de cabanas semi-arruinadas. Embora, vizinhas das montanhas, essas cabanas são construídas num terreno plano e chegam só a cerca de quarenta.”
“Não podendo usar suas terras, os habitantes de Vila Velha, vivem apenas da pesca; são muito pobres e seu número diminui dias a dia...” O autor termina o parágrafo citando que a Paróquia de Vila Velha era composta por cerca de apenas 700 a 800 adultos."
Após vislumbrar e diminuta e pobre Vila Velha, o viajante sobe o Convento da Penha, objetivo de sua visita à vila. Segue a descrição:
“Para chegar à igreja, passa-se primeiro por um arco e galga-se um caminho ladeado por dois muros, calçado com pedras grandes e chatas e sombreados por copadas árvores. Na extremidade deste caminho, exatamente embaixo do rochedo, encontra-se uma plataforma sobre a qual se ergueu uma construção estreita, baixa e comprida, dividida em pequenos aposentos destinados aos peregrinos que a devoção atrai para a montanha. Desta plataforma se sobe uma escada estreita cortada no rochedo e, alcançando o convento, descortina-se uma vista de imensa extensão.”
O botânico disse ter ficado “extasiado com a vista”, que na época eram o lindo mar da Praia da Costa, a planície arenosa de Vila Velha, as montanhas, o Ribeirão da Costa (hoje escoadouro de esgoto da cidade) e as ilhas da Bahia de Vitória, que hoje podem ser contadas nos dedos de uma mão e com sorte não sobram dedos.
Ele ainda cita o Governador do Rio, Salvador Correia de Sá, que por volta de 1637, esteve no convento e patrocinou sua ampliação e manutenção, com tributos que vinham de “Goitacás” (Campos), onde possuía terras e onde também os habitantes eram fieis devotos de Nossa Senhora da Penha, enviando oferendas a ela.
Ele cita uma tradição na festa da Penha que hoje não existe e nem poderia:
“Pouco antes da festa da Padroeira, os frades fazem peditórios nas imediações, no dia da festa, inúmeros peregrinos sobem a montanha e os religiosos lhes oferecem uma refeição custeada pelas esmolas recebidas. Junto ao convento há uma grande sala destinada a esse banquete público.”
Depois da visita ao Convento da Penha Saint-Hillaire parte para o Rio de Janeiro.
Ao ler seus relatos o que me chamou a atenção foi a condição da maior cidade do Estado do Espírito Santos há 200 anos. Sua população estava em queda e as pessoas viviam na miséria, muito diferente do que se vê hoje, desenvolvimento e prosperidade, mas sem fechar os olhos para as desigualdades e crescente número de bairros que nascem sem a mínima infra-estrutura.


Por Adilson Braga Fontes


Fonte:

SAINT-HILLAIRE. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. p. 35-38, 112-115.